O impacto fisiológico de uma Maratona no organismo
A Maratona é a prova de Atletismo
mais popular em todo o mundo, embora não seja corrida por qualquer comum mortal.
Melhor, pode ser para qualquer um, desde que se tenha cumprido um plano de
treino adequado e específico para cada indivíduo – e claro, não se encontrem
contra-indicações nos exames médicos efetuados antes da preparação.
Mesmo tendo-se tornado tão
popular e aparentemente pessoas de todas as idades a possam desafiar, a sua
conotação como não-saudável de extrema exigência fez com que só nos JO de Los
Angeles 1984 tivesse a primeira participação de mulheres. Apesar de já se ter
concluído que maratonistas são mais saudáveis do que sedentários não temos
outra hipótese se não respeitarmos os 42,195km que nos levam à linha de meta.
O
facto de haver cada vez mais provas, principalmente de montanha, com 60km,
100km, 160km, por exemplo numa montanha como o Monte-Branco (!) também faz com
que se ultrapassem certas barreiras psicológicas e nos atiremos de cabeça para
um desafio como uma (simples) Maratona.
Quase que podemos sentir a
adrenalina a correr pelas veias quando nos estamos a dirigir para o local da
competição.
Quando a corrida se inicia o
organismo está em constantes alterações bioquímicas, nos primeiros km’s, na
segunda metade da corrida onde a capacidade mental é um factor determinante,
nos km’s mais difíceis onde há uma voz a insistir que é melhor parar e no
último km em que voltamos a acordar. E claro, na chegada!
Nestas respostas fisiológicas do
organismo destacam-se as que têm um papel mais determinante durante uma prova
de endurance: regulação da temperatura corporal, desidratação, alimentação e
absorção dos alimentos, fadiga muscular e fadiga mental.
Hipertermia
O tempo quente traz consigo
importantes considerações a reter. Durante o exercício vigoroso quase 3/4 da
energia produzida pelos músculos é libertada sob a forma de calor. Se este
calor não fosse libertado ocorreriam sérios danos musculares e muito
provavelmente desidratação (o mito de correr com várias peças de roupa para
emagrecer é muito grave).
Através da libertação de calor e
transpiração o corpo mantém a temperatura estável, assim como tem um papel
regulador a intensidade a que corremos. Quanto mais forte o ritmo maior será a
temperatura corporal. É por isso que em dias muito quentes não conseguimos
obter as mesmas performances de dias frescos e/ou amenos.
Na primeira parte da corrida a
temperatura corporal sobe, mantendo-se depois estável com ligeiras alterações,
até ao final da mesma. Caso o corredor continuasse a acelerar o cérebro iria ordenar
uma série de respostas, sensações de fadiga e desconforto, que forçam a
desacelerar e a reduzir a temperatura, caso a situação começasse a ficar
descontrolada – daí por vezes haver paragens forçadas/quase desmaios/desmaios,
principalmente em competições mais longas do que a Maratona até. Já se assistiu
a atletas a desmaiarem, repousarem e refrescarem-se uns minutos e depois
continuarem – não é clinicamente aconselhado como devem calcular, mas a Vontade
é mais forte.
Os mecanismos automáticos do
nosso organismo podem ser falíveis. O próprio cérebro aquece e a sua capacidade
de funcionar em perfeitas condições fica afetada. Nesses momentos sucedem-se
esses episódios de tontura, desorientação, descoordenação e até desmaios.
Hipotermia
À primeira vista podemos pensar
que ninguém sente frio ao correr uma Maratona. Mas se estás a pensar correr uma
Maratona numa cidade fria ou numa data de Inverno há sempre a possibilidade de
estar bastante frio.
Entre 1982 e 1987 a Maratona de
Glasgow foi corrida com temperaturas desde os 4º (Ridley et al., 1990). Em
1983, na Maratona de Boston, 11,5% dos corredores necessitaram de assistência
médica, sendo a Hipotermia o principal diagnóstico médico (Jones et al., 1985).
Em casos em que prevemos
condições de tempo adversas devemos vestir-nos em camadas com roupa impermeável
- mas transpirável sempre, e se possível num ponto da prova retirar alguma
roupa junto de um familiar ou conhecido, se necessário. No final ter roupa seca
e quente para trocar de imediato.
Embora não tão popular como a
Hipertermia, a Hipotermia pode ocorrer ainda mais em competições com tempo
adverso e com a proliferação de corridas longas e de montanha -Trail Runnig. Para além dos habituais
dedos e narizes frios, a baixa de temperatura corporal leva a irregularidades
no ritmo cardíaco e os mesmos sintomas de desorientação e perda de
discernimento, pelo que deve ser vista da mesma forma séria como abordamos a
Hipertermia.
Depleção do Glicogénio
As refeições de Hidratos de
Carbono (HC) (Pasta Party) pré-maratona fazem parte de qualquer evento atual e
estão na moda. E porque não? Quando analisamos vemos que faz todo o sentido. Os
HC são mais rápidos a fornecer energia aos músculos do que as Gorduras e são
necessários a uma boa performance aeróbia.
No organismo os HC estão alojados
sob a forma de glicogénio nos músculos e no fígado, assim como em glucose na
corrente sanguínea.
Durante a Maratona os músculos
utilizam energia a partir do glicogénio das suas células e da glucose do sangue.
À medida que a glucose do sangue é utilizada o fígado recorre ao seu
glicogénio, convertendo-o em glucose para ser libertada na corrente sanguínea a
fim de manter os níveis de energia a utilizar estáveis.
Durante uma atividade prolongada – também se treina a alimentação durante as sessões de treino – os níveis de glicogénio são deplecionados. Neste momento o organismo tem que recorrer à energia da Gordura, que é mais lenta nas suas reações químicas, e não fornece tanta energia no mesmo espaço de tempo. Esta mudança não passa despercebida. Os corredores referem-se, alguns já carinhosamente, a este momento como “o Muro!” tal é a diferença do ritmo (e do positivismo mental com que seguiam) imposto antes e após.
Durante uma atividade prolongada – também se treina a alimentação durante as sessões de treino – os níveis de glicogénio são deplecionados. Neste momento o organismo tem que recorrer à energia da Gordura, que é mais lenta nas suas reações químicas, e não fornece tanta energia no mesmo espaço de tempo. Esta mudança não passa despercebida. Os corredores referem-se, alguns já carinhosamente, a este momento como “o Muro!” tal é a diferença do ritmo (e do positivismo mental com que seguiam) imposto antes e após.
Como se sabe um regime alimentar
rico em HC faz com que se encham as reservas de glicogénio nos músculos e
fígado. Se a depleção de glicogénio leva a uma redução da performance devemos
atestar as nossas reservas para evitar ou retardar “bater no muro”.
De formal geral e sem entrar em
pormenor a nível científico, até porque sempre foi um tema algo controverso,
vários estudos demonstraram ao longo dos anos, melhores resultados desportivos
com um reforço de HC na dieta dos atletas, ainda que somente em provas
superiores a 90 minutos.
É claro que o seu consumo tem
contra-indicações: demasiados HC levam a um excesso de peso, o que significa
maior necessidade energética durante treinos e competições. O acompanhamento
nutricional ao longo de todo o ano é aconselhado.
Se um corredor não ingerir HC
durante a Maratona, ao fim de aproximadamente duas horas dar-se-á a depleção de
todo o glicogénio do fígado. Este fenómeno, denominado Hipoglicemia leva à
redução da velocidade de corrida por perda da normal função cerebral (Noakes,
2003). Como o cérebro se alimenta da glucose do sangue, ocorrerá uma redução da
performance motora, da contração muscular, logo, velocidade mais lenta, mesmo
que haja algum glicogénio ainda restante nos músculos (Nybo, 2003).
Um estudo na distância da
Maratona revelou melhor performance consumindo uma bebida com 5,5% de HC em
comparação com apenas água e com bebida com 6,9% de HC (Tzintzas, et al. 1995).
Vários estudos sobre estes temas
envolveram testes de 20km, 30km somente. Uma razão para que não haja mais estudos
acerca do “muro” poderá dever-se ao facto de os atletas envolvidos serem de
elevada qualidade, correndo perto das 2h00 a Maratona, e estando bem treinados
não sintam “o Muro”. Já os corredores amadores que demoram +3h, +4h, +5h,…
Outro fator decisivo é a
preparação do corredor, o treino. A grande maioria dos treinos comtemplam as
sessões mais longas como corridas de ~30km/3 horas. Ora, se um corredor vai
realizar +4h/+5h na Maratona como pode estar preparado para ultrapassar as
dificuldades que vêm depois das 3h, altura mais dura? Não admira que tantos
corredores sintam o “muro”…
Ainda assim, continua a provar-se
que a alimentação é parte fundamental do processo de treino e competição.
Stellingwerf (2012) verificou melhorias nos recordes pessoais na Maratona, em
atletas de elite, após um programa de periodização de treino e nutrição
específicos. Na Maratona os atletas ingeriram ~150ml a cada ~15min de prova
numa solução de 10,01% ± 0,3% de HC.
Apesar de sabermos a importância
da ingestão de HC para a performance, uma coisa é certa, quando e em que
quantidade é um aspeto individual para cada corredor, assim como o treino deve
ser adequadamente preparado para cada corredor.
Fadiga muscular
Sem dúvida o stress muscular é um dos principais desafios a superar numa corrida
tão longa como a Maratona.
Um grande número de células
musculares são danificadas e destruídas ao longo dos 42,195 km. A principal
causa: o stress mecânico a que estão
sujeitas. Principalmente as fases excêntricas dos movimentos, em que o músculo
se contrai enquanto se alonga, estando portanto a ser puxado pelos dois lados
das suas inserções. Esta contração é mais exigente do que a contração
concêntrica (contrai-se enquanto se encurta) e das contrações isométricas
(estáticas).
Outra causa da fadiga muscular é
a depleção de proteínas para utilização como energia, denominada de
catabolismo. Como sabemos as proteínas têm uma pequena contribuição durante o
exercício, mas quando as reservas de glicogénio se esgotam as proteínas passam
a ter um papel mais importante como substrato energético. No final de uma prova
longa estas podem contribuir com aproximadamente até 15% da energia utilizada.
Se já terminaste um treino ou competição longa a cheirar a amónia é sinal de
que estiveste a “queimar” proteínas, já que a amónia é um produto do
catabolismo das proteínas.
A danificação das células
musculares decorre também do stress
oxidativo. Uma percentagem (até 5%) das moléculas de oxigénio libertam um
eletrão enquanto participam na libertação de energia das mitocôndrias, formando
os tão conhecidos “radicais livres”. Este processo leva a danos nas membranas
celulares, ADN e proteínas estruturais. Durante exercício vigoroso podemos
aumentar em 7x o consumo de oxigénio, com um aumento nas mesmas proporções dos
“radicais livres”.
Fadiga mental
A fadiga mental, conhecida como
Fadiga Central, por se referir ao órgão que nos “comanda” também ocorre após
várias horas de esforço intenso.
Tal como acontece nas estruturas
musculares o funcionamento cerebral é influenciado pelos diversos fatores
anteriormente referenciados, havendo igualmente um acumular de metabolitos
resultantes do esforço que levam a sensações de desconforto, falta de vontade
para prosseguir, pensamentos negativos, alterações do humor e ainda interferem
nas normais ligações neuro-musculares, que enviam “mensagens de comando” para
os músculos trabalharem eficientemente.
Mesmo num corredor com uma forte
vontade de terminar, a parte subconsciente do cérebro pode “desligar” as
pernas, caso perceba que os riscos para a saúde são grandes.
O corpo de um homem com 68kg de
peso corporal contém ~41kg de água. Uma mulher de 54kg tem de ~29kg água na sua
composição.
A transpiração é um vital
mecanismo de arrefecimento, mas durante uma Maratona, dependendo das condições,
podemos perder 1L de suor por hora! Se não ingerirmos fluídos por forma a
compensar estas perdas é quase certo que não cortaremos a meta. Ainda assim,
com hidratação constante, após as corridas, há muitos atletas com perdas de
peso significativas.
Quando o corredor sente sede, o
processo de desidratação já se iniciou. Por cada litro de suor perdido
contam-se também 28 gramas de sal e minerais essenciais ao bom funcionamento da
corrente sanguínea.
Corredores que demoram pouco mais
de 2h e estão extremamente bem treinados hidratam-se com o essencial. Já os
amadores, para além de poderem ter negligenciado o treino da nutrição e
hidratação durante as sessões de treino, e não saberem realmente como proceder
em competição, por estarem 4h/5h em prova podem sofrer de Hiponatremia por
demasiada ingestão de água e/ou pouca ingestão de sódio, vulgarmente chamado de
eletrólitos. Este estado caracteriza-se por reduzidas concentrações de sódio no
sangue. Se continuamos a ingerir só água, estamos a diluir cada vez mais o
sódio existente. Muitas vezes é a Hiponatremia a causa de redução da
performance, da função muscular, náuseas, câimbras, e não a falta de HC como os
corredores julgam.
Um corredor pode sofrer de
Hiponatremia depois de uma prova longa e exigente por ingerir grandes
quantidades de água isoladamente. Depois do corredor urinar, indicando que os
rins estão a funcionar corretamente, é seguro beber.
Davis et al. (2001) encontraram
26 casos de Hiponatremia em ~34.000 corredores da Maratona de San Diego em 1998
e 1999. Verificaram maior incidência nas mulheres, corredores mais lentos (+4h)
e em pessoas que recorreram a anti-inflamatórios não esteroides (AINE) (uso
comum mas incorreto em atletas do pelotão para disfarçarem dores – normalmente
auto-medicados). Hew et al. (2003) verificaram resultados idênticos.
Quanto aos AINE, aumentam a
atividade de hormonas anti-diuréticas, resultando numa maior retenção de
líquidos, logo, diluindo os níveis de sódio no organismo.
42,195 km depois
Demora algum tempo até à
recuperação fisiológica completa do organismo do desafio de correr (e treinar
para) uma maratona.
Um estudo revelou que o nível de
enzimas antioxidantes no sangue permaneceu significativamente reduzido enquanto
marcadores de danos musculares e inflamação permaneceram significativamente
altos, passadas três semanas de uma competição de endurance.
O sistema imunitário (SI) tem um
papel importante na recuperação do organismo após esforço intenso. No caso de
provas longas o próprio SI foi afetado e como tal não se apresenta a 100% para
desempenhar esse papel após a competição.
As células imunitárias permanecem
deprimidas por alguns dias, o que faz com que vulgarmente a seguir a uma prova
os corredores fiquem constipados, engripados, apresentem febre, entre outros –
infeções bacterianas e virais.
Poderão também ocorrer episódios de sensações
de depressão. Estes não são mais do que os sintomas semelhantes ao overtraining – estado crónico de fadiga
geral por desregulação entre treino e recuperação que pode demorar vários meses
a ser recuperado. Este estado provoca desregulação nos neurotransmissores
cerebrais do nosso estado psicológico, fazendo com que surjam estados
depressivos. Tem sido colocada a hipótese de que este é um mecanismo cerebral
para desencorajar a pessoa a voltar a fazer passar o organismo pelo mesmo
processo – por enquanto.
Com a recuperação em pleno da
função muscular a demorar semanas, total recuperação de células musculares até
meses, após um desafio tão forte aconselha-se:
- evitar situações de stress do dia-a-dia;
- manter no plano de treinos
atividades físicas moderadas (aproveitar para fazê-lo em família), não longas e
variadas;
- alimentação anti-inflamatória,
equilibrada, rica em nutrientes de qualidade, vitaminas e minerais;
- noites de sono com qualidade.
E aqui não é por enquanto, é durante
todo o ano.
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